Tenho quase cinquenta anos. Carrego comigo uma história longa, marcada por rótulos, culpas e julgamentos — muitos dos outros, a maioria vindos de mim mesmo. Sou portador de Transtorno de Déficit de Atenção predominantemente desatento, e essa condição moldou, em silêncio, grande parte da minha vida. Sempre fui o desorganizado, o procrastinador, o que começa com entusiasmo e termina com pressa, o que esquece prazos, datas, compromissos. E por isso, durante muito tempo, fui também o alvo de críticas, de olhares impacientes, de cobranças duras e pouco compreensivas.
Não posso negar: isso me feriu. Fui me enchendo de frustração, de raiva, de vergonha. Em momentos sombrios, mergulhei em pensamentos desesperadores — flertei com a ideia de desistir de tudo, inclusive de mim. O peso de não corresponder às expectativas do mundo — e às minhas próprias — parecia insuportável. Como é duro viver em guerra com a própria mente.
Durante anos, resisti à ideia de que houvesse uma explicação possível para meu jeito de ser. Mas, aos poucos, fui entendendo que o nome que deram para isso — TDAH — não era uma desculpa, tampouco uma sentença. Era um ponto de partida. Um convite à compreensão. Comecei a estudar o transtorno, a mergulhar em relatos, pesquisas, experiências. E, aos poucos, aprendi a ser mais gentil comigo mesmo.
Sim, eu tenho TDAH. Mas não me escondo atrás disso. Não uso minha condição como álibi para a irresponsabilidade ou a negligência. Pelo contrário: a consciência do transtorno me fez buscar estratégias, ferramentas, rotinas que me ajudem a atravessar o dia com mais presença, mais foco, mais estrutura.
Uma dessas ferramentas é a escrita. Escrevo diariamente em um diário — como uma forma de organizar o turbilhão mental, de registrar metas, de elaborar sentimentos. Escrever é meu modo de silenciar o caos, de me escutar com mais atenção. Uso também listas de tarefas, cronogramas, aplicativos de organização. Nem sempre funciona. Às vezes falho. Mas aprendi que falhar não me desqualifica como ser humano.
Mas se hoje estou aqui, inteiro, lúcido e disposto a seguir — devo isso também, e talvez principalmente, à literatura.
A leitura foi o refúgio que me salvou quando nada mais parecia fazer sentido. Enquanto o mundo me apontava falhas, os livros me ofereciam abrigo. Mergulhei nos clássicos como quem busca ar embaixo d’água. Fui moldado por Dostoiévski, Machado de Assis, Érico Verissimo, Rubem Fonseca, entre tantos outros. Encontrei neles não apenas personagens com quem me identifiquei, mas uma linguagem que me deu nome, que traduziu meus abismos internos em palavras compreensíveis.
Ler me humanizou. Me deu repertório, lucidez e empatia. Me ensinou que o sofrimento, embora singular em cada um, é universal. Que todos, em alguma medida, estamos tentando atravessar as nossas tempestades. A literatura me ofereceu espelhos e janelas — espelhos para me reconhecer, janelas para respirar outros horizontes.
Hoje, carrego uma paz que não é plena, mas é sincera. Uma paz construída a partir da aceitação, da maturidade e do esforço contínuo. Conviver com o TDAH é como remar contra uma correnteza interna. Mas remar é possível. Cansa, mas ensina. E nessa travessia, aprendi a olhar para mim com menos culpa e mais compaixão.
Não sou um preguiçoso. Não sou um irresponsável. Sou alguém que luta todos os dias para dar conta do mundo e de si mesmo. E essa luta, por mais solitária que pareça, não é vã. Ela me humaniza. E, quem sabe, possa inspirar outros que também se sentem à deriva a acreditarem que há caminhos — mesmo que tortos, mesmo que lentos — para a serenidade.
E se eu puder deixar uma última reflexão a quem lê este texto: nunca subestime o poder de um livro. Às vezes, ele é o único abraço possível para quem, como eu, sempre se sentiu um pouco fora do lugar.